ANSTEE REVELA SEGREDOS
Kumuênho da Rosa |
Fotografia: Francisco Bernardo
12 de Setembro, 2014
Margareth Anstee, a antiga
representante especial do secretário--geral das Nações Unidas em Angola e
autora do livro "Órfão da Guerra Fria", no qual narra a batalha
sangrenta pela conquista de Luanda pelas forças da UNITA em Outubro-Novembro de
1992, considerou um "escândalo" a comunidade internacional ter
"simplesmente ignorado" o que se estava a passar em Angola naquele
período.
De regresso a Angola, 22 anos depois
de ter “desistido" da missão de aproximar as partes em conflito e
restabelecer a paz, a diplomata britânica de 88 anos contou ao Jornal de Angola
o que esteve na base da sua decisão: “Certa vez em Abidjan, em Maio de 1993,
preparávamos a assinatura de um acordo de cessar-fogo, mas para convencer a
UNITA a assinar precisava de um contingente simbólico de capacetes azuis para assegurar a retirada das suas tropas das
cidades que tinham ocupado nos últimos meses".
“Solicitei o contingente, que era
crucial para a assinatura do acordo e disseram-me que não. Foi-me dito que as
forças tinham de ir para a Jugoslávia, suponho que por ser um país europeu, se
calhar, para eles, mais importante que um país africano. Magoou-me muito a
indiferença da Comunidade Internacional. Ao receber aquela resposta fiquei
desiludida e então decidi terminar a minha missão”, recordou.
Para a diplomata reformada, essa
exigência da UNITA até podia ser falsa, como de resto o tempo se encarregou de
mostrar que muitas delas foram, mas gostava de poder dizer-lhes que tinha
conseguido o contingente. “Talvez tenha sido um 'bluff’ esse pedido da UNITA,
mas gostava de ter podido dizer-lhes “estão aqui os capacetes azuis que pediram,
e agora assinam ou não?"
Anstee recorda que foi nesse momento
que decidiu ser a altura de deixar a missão. “Tomei essa decisão por entender
que um mediador precisa de ter algo para oferecer ou para sancionar, algo
positivo ou negativo para tratar e resolver as situações. Eu não tive nada, por
isso, paciência!"
A diplomata considerou “outro erro
terrível" da Comunidade Internacional o tratamento que deu ao Governo de
Angola, que pretendia ver realizada uma conferência de doadores, depois da
assinatura dos acordos de paz. “Não se realizou a conferência internacional de
doadores, porque a Comunidade Internacional dizia que \'Angola é muito rica e
não precisava'\".
O que Angola precisava não era tanto
o dinheiro, disse, mas a estabilização da paz. Uma paz sustentável não precisa
somente de dinheiro. “Nestas circunstâncias, um país precisa de organização e
administração, já que desde a independência em Angola ninguém jamais conseguiu
controlar o país inteiro, por causa da guerra", assinalou.
Reencontro com Presidente
Sobre o reencontro com o Presidente
da República, Margareth Anstee disse: “Foi muito agradável para mim e espero
que também para o Presidente. Obviamente, há 22 anos eu via com muita
frequência o senhor Presidente em circunstâncias muito difíceis, mas temos as
nossas lembranças daqueles dias, dessa época de conflito". A diplomata
afirmou ter também conversado com o líder angolano sobre a situação actual de
Angola e a projecção na arena internacional. “O país melhorou bastante. Fiquei
encantada por regressar a um país que conheci destruído, mas que agora é
próspero e vive em paz", declarou.
Reviravolta na situação
Anstee, que já trabalhou no Koweit, Bolívia e Peru, disse que é incapaz de estar indiferente perante o facto de Angola jogar hoje um papel activo extremamente importante na arena internacional, quando “antes era citada quase sempre como uma grande preocupação da Comunidade Internacional, no sentido negativo, por causa da guerra".
Sobre a iminência da entrada de Angola no Conselho de Segurança, como membro não permanente, a antiga representante especial do Secretário-Geral das Nações Unidas referiu que a sua própria experiência, como um país que viveu décadas de guerra e soube dar a volta por cima, e pelo papel de liderança que vem assumindo em África, pode ajudar a ONU na resolução de conflitos e busca de soluções pacíficas.
Talvez a última visita
Aos 88 anos, vão faltando forças e
também saúde à diplomata britânica, muito querida entre os angolanos. “Apesar
de todas as histórias tristes que acompanhei, tive sempre muitas esperanças no
futuro de Angola e guardo sempre no meu coração uma admiração especial pelo
povo angolano. Lamentavelmente, por razões da vida e de saúde, essa pode ser a
minha última visita, mas estou contente pela recepção calorosa, pela forma como
fui abordada nas ruas, as entrevistas que dei, enfim, tudo o que passei nestes
dias maravilhosos em Luanda."
Órfão da Guerra Fria
O livro de Margareth Anstee traduz o
relato vivido da operação de manutenção da paz da ONU em Angola (1992/93).
Operação que, apesar do financiamento inadequado e de um mandato limitado,
conseguiu fazer com que se realizassem eleições bem sucedidas, embora o país se
tenha envolvido, de seguida, numa nova guerra, quando Jonas Savimbi e a UNITA
se recusaram a aceitar os resultados.
A autora, até ao momento única mulher
a chefiar uma missão de manutenção de paz, entrelaça na obra experiências
pessoais com o relato dos acontecimentos, tal como eles se verificaram,
descrevendo as personalidades envolvidas e o sofrimento horrível do povo
angolano.
Pior guerra do mundo
Margaret Joan Anstee fornece uma
descrição viva da batalha sangrenta pela conquista de Luanda em
Outubro-Novembro de 1992 e dos seus esforços sucessivos para negociar novo
cessar-fogo, para voltar a reactivar o processo de paz e prestar assistência
humanitária por entre as linhas de combate. Anstee mostra como esta tragédia,
também conhecida como a “pior guerra do mundo", foi uma carnificina bem
maior do que a que teve lugar na Bósnia, apesar de quase completamente ignorada
pela comunidade internacional e pelos meios de comunicação social. Margaret
Anstee analisa ainda as razões do colapso do processo e aponta as lições que
dele se podem retirar.
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