Há muita confusão acerca do atentado
terrorista em Paris, matando vários cartunistas. Quase só se ouve um lado e não
se buscam as raízes mais profundas deste fato condenável mas que exige uma
interpretação que englobe seus vários aspectos ocultados pela midia
internacional e pela comoção legítima face a um ato criminoso. Mas ele é uma
resposta a algo que ofendia milhares de fiéis muçulmanos. Evidentemente não se
responde com o assassinato. Mas também não se devem criar as condições
psicológicas e políticas que levem a alguns radicais a lançarem mão de meios
reprováveis sobre todos os aspectos. Publico aqui um texto de um padre que é
teólogo e historiador e conhece bem a situação da França atual. Ele nos
fornece dados que muitos talvez não os conheçam. Suas reflexões nos ajudam a
ver a complexidade deste anti-fenômeno com suas aplicações também à situação no
Brasil: Lboff
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Eu condeno os atentados em Paris, condeno
todos os atentados e toda a violência, apesar de muitas vezes xingar e
esbravejar no meio de discussões, sou da paz e me esforço para ter auto
controle sobre minhas emoções…
Lembro da frase de John Donne: “A morte de
cada homem diminui-me, pois faço parte da humanidade; eis porque nunca me
pergunto por quem dobram os sinos: é por mim”. Não acho que nenhum dos
cartunistas “mereceu” levar um tiro, ninguém o merece, acredito na mudança, na
evolução, na conversão. Em momento nenhum, eu quis que os cartunistas da
Charlie Hebdo morressem. Mas eu queria que eles evoluíssem, que mudassem… Ainda
estou constrangido pelos atentados à verdade, à boa imprensa, à honestidade,
que a revista Veja, a Globo e outros veículos da imprensa brasileira promoveram
nesta última eleição.
A Charlie Hebdo é uma revista importante na
França, fundada em 1970, é mais ou menos o que foi o Pasquim. Isso lá na
França. 90% do mundo (eu inclusive) só foi conhecer a Charlie Hebdo em 2006, e
já de uma forma bastante negativa: a revista republicou as charges do jornal
dinamarquês Jyllands-Posten (identificado como “Liberal-Conservador”, ou seja,
a direita europeia). E porque fez isso? Oficialmente, em nome da “Liberdade de
Expressão”, mas tem mais…
O editor da revista na época era Philippe
Val. O mesmo que escreveu um texto em 2000 chamando os palestinos (sim! O povo
todo) de “não-civilizados” (o que gerou críticas da colega de revista Mona
Chollet (críticas que foram resolvidas com a demissão sumaria dela). Ele ficou
no comando até 2009, quando foi substituído por Stéphane Charbonnier, conhecido
só como Charb. Foi sob o comando dele que a revista intensificou suas charges
relacionadas ao Islã, ainda mais após o atentado que a revista sofreu em 2011…
A França tem 6,2 milhões de muçulmanos.
São, na maioria, imigrantes das ex-colônias francesas. Esses muçulmanos não estão
inseridos igualmente na sociedade francesa. A grande maioria é pobre, legada à
condição de “cidadão de segunda classe”, vítimas de preconceitos e exclusões.
Após os atentados do World Trade Center, a situação piorou.
Alguns chamam os cartunistas mortos de
“heróis” ou de os “gigantes do humor politicamente incorreto”, outros muitos os
chamam de “mártires da liberdade de expressão”. Vou colocar na conta do
momento, da emoção. As charges polêmicas do Charlie Hebdo, como os comentários
políticos de colunistas da Veja, são de péssimo gosto, mas isso não está em
questão. O fato é que elas são perigosas, criminosas até, por dois motivos.
O primeiro é a intolerância. Na religião
muçulmana, há um princípio que diz que o Profeta Maomé não pode ser retratado,
de forma alguma. Esse é um preceito central da crença Islâmica, e desrespeitar
isso desrespeita todos os muçulmanos. Fazendo um paralelo, é como se um pastor
evangélico chutasse a imagem de Nossa Senhora para atacar os católicos…Qual é o objetivo disso? O próprio Charb falou: “É preciso que o Islã esteja
tão banalizado quanto o catolicismo”. “É preciso” porquê? Para quê?
Note que ele não está falando em atacar
alguns indivíduos radicais, alguns pontos específicos da doutrina islâmica, ou
o fanatismo religioso. O alvo é o Islã, por si só. Há décadas os culturalistas
já falavam da tentativa de impor os valores ocidentais ao mundo todo. Atacar a
cultura alheia sempre é um ato imperialista. Na época das primeiras
publicações, diversas associações islâmicas se sentiram ofendidas e decidiram
processar a revista. Os tribunais franceses, famosos há mais de um século pela
xenofobia e intolerância (ver Caso Dreyfus), como o STF no Brasil, que foi
parcial nas decisões nas últimas eleições e no julgar com dois pesos e duas medidas
casos de corrupção de políticos do PSDB ou do PT, deram ganho de causa para a
revista.
Foi como um incentivo. E a Charlie Hebdo
abraçou esse incentivo e intensificou as charges e textos contra o Islã e
contra o cristianismo, se tem dúvidas, procure no Google e veja as publicações
que eles fazem, não tenho coragem de publicá-las aqui…
Mas existe outro problema, ainda mais
grave. A maneira como o jornal retratava os muçulmanos era sempre ofensiva. Os
adeptos do Islã sempre estavam caracterizados por suas roupas típicas, e sempre
portando armas ou fazendo alusões à violência, com trocadilhos infames com
“matar” e “explodir”…). Alguns argumentam que o alvo era somente “os indivíduos
radicais”, mas a partir do momento que somente esses indivíduos são mostrados,
cria-se uma generalização. Nem sempre existe um signo claro que indique que
aquele muçulmano é um desviante, já que na maioria dos casos é só o desviante
que aparece. É como se fizéssemos no Brasil uma charge de um negro assaltante e
disséssemos que ela não critica/estereotipa os negros, somente aqueles negros
que assaltam…
E aí colocamos esse tipo de mensagem na
sociedade francesa, com seus 10% de muçulmanos já marginalizados. O poeta
satírico francês Jean de Santeul cunhou a frase: “Castigat ridendo mores”
(costumes são corrigidos rindo-se deles). A piada tem esse poder. Mas, as piadas são
sempre preconceituosas, ela transmite e alimenta o preconceito. Se ela sempre
retrata o árabe como terrorista, as pessoas começam a acreditar que todo árabe
é terrorista. Se esse árabe terrorista dos quadrinhos se veste exatamente da
mesma forma que seu vizinho muçulmano, a relação de identificação--projeção é
criada mesmo que inconscientemente. Os quadrinhos, capas e textos da Charlie
Hebdo promoviam a Islamofobia. Como toda população marginalizada, os muçulmanos
franceses são alvo de ataques de grupos de extrema-direita. Esses ataques matam
pessoas. Falar que “Com uma caneta eu não degolo ninguém”, como disse Charb, é
hipócrita. Com uma caneta se prega o ódio que mata pessoas…
Uma das defesas comuns ao estilo do Charlie
Hebdo é dizer que eles também criticavam católicos e judeus… Se as outras religiões não reagiram á ofensa, isso é um problema delas. Ninguém
é obrigado a ser ofendido calado.
“Mas isso é motivo para matarem os caras!?”. Não! Claro que não! Ninguém em sã consciência apoia os atentados. Os três atiradores representam o que há de pior na humanidade: gente incapaz de dialogar. Mas é fato que o atentado poderia ter sido evitado. Bastava que a justiça tivesse punido a Charlie Hebdo no primeiro excesso, assim como deveria/deve punir a Veja por suas mentiras. Traçasse uma linha dizendo: “Desse ponto vocês não devem passar”.
“Mas isso é motivo para matarem os caras!?”. Não! Claro que não! Ninguém em sã consciência apoia os atentados. Os três atiradores representam o que há de pior na humanidade: gente incapaz de dialogar. Mas é fato que o atentado poderia ter sido evitado. Bastava que a justiça tivesse punido a Charlie Hebdo no primeiro excesso, assim como deveria/deve punir a Veja por suas mentiras. Traçasse uma linha dizendo: “Desse ponto vocês não devem passar”.
“Mas isso é censura”, alguém argumentará. E
eu direi, sim, é censura. Um dos significados da palavra “Censura” é
repreender. A censura já existe. Quando se decide que você não pode sair
simplesmente inventando histórias caluniosas sobre outra pessoa, isso é
censura. Quando se diz que determinados discursos fomentam o ódio e por isso
devem ser evitados, como o racismo ou a homofobia, isso é censura. Ou mesmo
situações mais banais: quando dizem que você não pode usar determinado
personagem porque ele é propriedade de outra pessoa, isso também é censura. Nem
toda censura é ruim…
Deixo claro que não estou defendendo a
censura prévia, sempre burra. Não estou dizendo que deveria ter uma lista de
palavras/situações que deveriam ser banidas do humor. Estou dizendo que cada
caso deveria ser julgado. Excessos devem ser punidos. Não é “Não fale!”. É
“Fale!, mas aguente as consequências”. E é melhor que as consequências venham na
forma de processos judiciais do que de balas de fuzis ou bombas.
Voltando à França, hoje temos um país de
luto. Porém, alguns urubus são mais espertos do que outros, e já começamos a
ver no que o atentado vai dar. Em discurso, Marine Le Pen declarou: “a nação
foi atacada, a nossa cultura, o nosso modo de vida. Foi a eles que a guerra foi
declarada”. Essa fala mostra exatamente as raízes da islamofobia. Para os
setores nacionalistas franceses (de direita, centro ou esquerda), é
inadmissível que 10% da população do país não tenha interesse em seguir “o modo
de vida francês”. Essa colônia, que não se mistura, que não abandona sua
identidade, é extremamente incômoda. Contra isso, todo tipo de medida é tomada.
Desde leis que proíbem imigrantes de expressar sua religião até… charges
ridicularizando o estilo de vida dos muçulmanos! Muitos chargistas do mundo
todo desenharam armas feitas com canetas para homenagear as vítimas. De longe,
a homenagem parece válida. Quando chegam as notícias de que locais de culto
islâmico na França foram atacados, um deles com granadas!, nessa madrugada, a
coisa perde um pouco a beleza. É a resposta ao discurso de Le Pen, que pedia
para a França declarar “guerra ao fundamentalismo” (mas que nos ouvidos dos
xenófobos ecoa como “guerra aos muçulmanos”, e ela sabe disso).
Por isso tudo, apesar de lamentar e
repudiar o ato bárbaro do atentado, eu não sou Charlie. Je ne suis pas
Charlie.
Teologia da libertação por um de seus
fundadores Em "Ética"
Educar para a celebração da vida e da Terra
Em "Ética"
from→ Ética, Educação, Espiritualidade, História, Política, Religião
← Para se entender o
terrorismo contra o Charlie Hebbo de Paris
Eu não sou Charlie, je ne suis pas Charlie:
Pe. Antonio Piber →
251 Comentários leave one →
- Rosario Braga PERMALINK10/01/2015 16:10Ninguém de bom senso pode defender o ataque, porem respeito ao outro e de bom tom e evita atitudes extremas. Vi varias charges do jornal todas atentatórias a dignidade dos mulçumanos!
- Dimitrios Bozinis PERMALINK10/01/2015 16:17Como sempre, o mais difícil é traçar a linha entre o certo e o errado, entre o censurável e o não cernsurável. Os padrões morais e éticos de cada sociedade são proprios dela mesmo, não podemos aplicá-los igualmente à todas as culturas e agir de acordo com a cultura de cada um. Podemos discordar sem recorrer a violência, a opinião da maioria pauta sempre o padrão moral de cada sociedade.
- paulo ferraz alves PERMALINK10/01/2015 16:17prefiro recolher-me a minha insignificância…..
- feyruz PERMALINK10/01/2015 16:19com respeito a que todos aqui escreveram suas opinioes ! o comentario de renaud pra quem entende de estopin para a guerra, começar na frança quando dizem que a al qaeda que por entendimento de muitos sabemos que quem fundou a al qaeda foram os eua . e de que os atentados que aconteceram nos eua em 2001 foram orquestradas por eua dando o motivo para eles (eua) invadirem os paises islamicos e fazerem o que bem entenderem ! e com esse atentado tambem organizado por celulas da al Qaeda foi tambem mandada para futricar o povo islamico e se começar a 3 guerra ! de algum lugar e motivo eles tinha que fazer valer o começo da guerra ! e isso nao vai ficar por isso mesmo podem ter certeza disso! os interessados com a guerra sao os da elite global que querem dizimar as massas e usar como bode espiatorio o isla! quem escreveu aquela charge sabia que ia dar nisso e muito mais! esssa e a minha opiniao ! com respeito a todos !
- Renato Saldanha PERMALINK10/01/2015 16:21Caros Amigos, esse texto foi escrito pelo meu irmão, Rafael Saldanha, e publicado no seu blog na quinta-feira. Segue o original:http://emtomdemimimi.blogspot.com.br/2015/01/je-ne-suis-pas-charlie.html
Fiquei envergonhada com os comentários, só os transcrevi até o que menciona o texto do irmão e transcrevi-o na próxima página, para que quem tem bom senso, leia e reflita, não são necessárias as agressões, pois não é para isso que se escreve. Escreve-se imaginando que pessoas inteligentes e letradas, terão capacidade de interpretação e de reflexão e tirarão suas próprias conclusões, acrescentarão conhecimentos, formarão suas opiniões e nada mais.
Aquele que se sente ofendido, tenho pena, pois denota um intelecto pouco estimulado...
Ler e ouvir enriquecem!
Quanto à mania dos homens, acharem que podem criar uma massa burra de seres, devo decepcioná-los e lembrá-los, somos indivíduos, lembram disso? Indivisíveis, seremos sempre unos e diferentes, isso é o que torna a humanidade tão rica e maravilhosa. Que graça teria ir para outro país se tudo fosse exatamente igual ao que deixamos, nem as cidades do mesmo país são iguais. VIVA A DIFERENÇA!