EM TOM DE MIMIMI
QUINTA-FEIRA, 8 DE JANEIRO DE 2015
POSTADO POR EL RAFO SALDAÑA ÀS 09:20
JE
NE SUIS PAS CHARLIE
Em primeiro lugar, eu condeno os atentados
do dia do 7 de janeiro. Apesar de muitas vezes xingar e esbravejar no meio de
discussões, sou um cara pacífico. A última vez que me envolvi em uma briga foi
aos 13 anos (e apanhei feito um bicho). Não acho que a violência seja a melhor
solução para nada. Um dos meus lemas é a frase de John Donne: “A morte de cada
homem diminui-me, pois faço parte da humanidade; eis porque nunca me pergunto
por quem dobramos sinos: é por mim”. Não acho que nenhum dos cartunistas
“mereceu” levar um tiro. Ninguém merece. A morte é a sentença final, não
permite que o sujeito evolua, mude. Em momento nenhum, eu quis que os
cartunistas da Charlie Hebdo morressem. Mas eu queria que eles evoluíssem, que
mudassem.
Após o atentado, milhares de pessoas se
levantaram no mundo todo para protestar contra os atentados. Eu também fiquei
assustado, e comovido, com isso tudo. Na internet, surgiu o refrão para essas
manifestações: Je Suis Charlie. E aí a coisa começou a me incomodar.
A Charlie Hebdo é uma revista importante na
França, fundada em 1970 e identificada com a esquerda pós-68. Não vou falar de
toda a trajetória do semanário. Basta dizer que é mais ou menos o que foi o
nosso Pasquim. Isso lá na França. 90% do mundo (eu inclusive) só foi conhecer a
Charlie Hebdo em 2006, e já de uma forma bastante negativa: a revista
republicou as charges do jornal dinamarquês Jyllands-Posten (identificado como
“Liberal-Conservador”, ou seja, a direita européia). E porque fez isso?
Oficialmente, em nome da “Liberdade de Expressão”, mas tem mais...
O editor da revista na época era Philippe
Val. O mesmo que escreveu um texto em 2000 chamando os palestinos (sim! O povo
todo) de “não-civilizados” (o que gerou críticas da colega de revista Mona
Chollet – críticas que foram resolvidas com a saída dela). Ele ficou no comando
até 2009, quando foi substituído por Stéphane Charbonnier, conhecido só como
Charb. Foi sob o comando dele que a revista intensificou suas charges
relacionadas ao Islã – ainda mais após o atentado que a revista sofreu em 2011.
Uma pausa para o contexto. A França tem 6,2
milhões de muçulmanos. São, na maioria, imigrantes das ex-colônias francesas.
Esses muçulmanos não estão inseridos igualmente na sociedade francesa. A grande
maioria é pobre, legada à condição de “cidadão de segunda classe”. Após os
atentados do World Trade Center, a situação piorou. Já ouvi de pessoas que
saíram de um restaurante “com medo de atentado” só porque um árabe entrou.
Lembro de ter lido uma pesquisa feita há alguns anos (desculpem, não consegui
achar a fonte) em que 20 currículos iguais eram distribuídos por empresas
francesas. Eles eram praticamente iguais. A única diferença era o nome dos
candidatos. Dez eram de homens com sobrenomes franceses, ou outros dez eram de
homens com sobrenomes árabes. O currículo do francês teve mais que o dobro de
contatos positivos do que os do candidato árabe. Isso foi há alguns anos. Antes
da Frente Nacional, partido de ultra-direita de Marine Le Pen, conquistar 24
cadeiras no parlamento europeu...
De volta à Charlie Hebdo: Ontem vi Ziraldo
chamando os cartunistas mortos de “heróis”. O Diário do Centro do Mundo (DCM)
os chamou de “gigantes do humor politicamente incorreto”. No Twitter, muitos
chamaram de “mártires da liberdade de expressão”. Vou colocar na conta do
momento, da emoção. As charges polêmicas do Charlie Hebdo são de péssimo gosto,
mas isso não está em questão. O fato é que elas são perigosas, criminosas até,
por dois motivos.
O primeiro é a intolerância. Na religião
muçulmana, há um princípio que diz que o profeta Maomé não pode ser retratado,
de forma alguma. (Isso gera situações interessantes, como o filme A Mensagem –
Ar Risalah, de 1976 – que conta a história do profeta sem desrespeitar esse
dogma – as soluções encontradas são geniais!). Esse é um preceito central da
crença Islâmica, e desrespeitar isso desrespeita todos os muçulmanos. Fazendo
um paralelo, é como se um pastor evangélico chutasse a estátua de Nossa Senhora
para atacar os católicos. O Charlie Hebdo publicou a seguinte charge.
Qual é o objetivo disso? O próprio Charb
falou: “É preciso que o Islã esteja tão banalizado quanto o catolicismo”. Ok, o
catolicismo foi banalizado. Mas isso aconteceu de dentro pra fora. Não nos foi
imposto externamente. Note que ele não está falando em atacar alguns indivíduos
radicais, alguns pontos específicos da doutrina islâmica, ou o fanatismo
religioso. O alvo é o Islã, por si só. Há décadas os culturalistas já falavam
da tentativa de impor os valores ocidentais ao mundo todo. Atacar a cultura
alheia sempre é um ato imperialista. Na época das primeiras publicações,
diversas associações islâmicas se sentiram ofendidas e decidiram processar a
revista. Os tribunais franceses – famosos há mais de um século pela xenofobia e
intolerância (ver Caso Dreyfus) – deram ganho de causa para a revista. Foi
como um incentivo. E a Charlie Hebdo abraçou esse incentivo e intensificou as
charges e textos contra o Islã.
Mas existe outro problema, ainda mais
grave. A maneira como o jornal retratava os muçulmanos era sempre ofensiva. Os
adeptos do Islã sempre estavam caracterizados por suas roupas típicas, e sempre
portando armas ou fazendo alusões à violência (quantos trocadilhos com “matar”
e “explodir”...). Alguns argumentam que o alvo era somente “os indivíduos
radicais”, mas a partir do momento que somente esses indivíduos são mostrados,
cria-se uma generalização. Nem sempre existe um signo claro que indique que
aquele muçulmano é um desviante, já que na maioria dos casos é só o desviante
que aparece. É como se fizéssemos no Brasil uma charge de um negro assaltante e
disséssemos que ela não critica/estereotipa os negros, somente aqueles negros
que assaltam...
E aí colocamos esse tipo de mensagem na
sociedade francesa, com seus 10% de muçulmanos já marginalizados. O poeta
satírico francês Jean de Santeul cunhou a frase: “Castigat ridendo mores”
(costumes são corrigidos rindo-se deles). A piada tem esse poder. Se a piada é
preconceituosa, ela transmite o preconceito. Se ela sempre retrata o árabe como
terrorista, as pessoas começam a acreditar que todo árabe é terrorista. Se esse
árabe terrorista dos quadrinhos se veste exatamente da mesma forma que seu
vizinho muçulmano, a relação de identificação-projeção é criada mesmo que
inconscientemente. Os quadrinhos, capas e textos da Charlie Hebdo promoviam a
Islamofobia. Como toda população marginalizada, os muçulmanos franceses são
alvo de ataques de grupos de extrema-direita. Esses ataques matam pessoas.
Falar que “Com uma caneta eu não degolo ninguém”, como disse Charb, é
hipócrita. Com uma caneta se prega o ódio que mata pessoas.
No artigo do Diário do Centro do Mundo,
Paulo Nogueira diz: “Existem dois tipos de humor politicamente incorreto. Um é
destemido, porque enfrenta perigos reais. O outro é covarde, porque pisa nos
fracos. Os cartunistas do jornal francês Charlie Hebdo pertenciam ao primeiro
grupo. Humoristas como Danilo Gentili e derivados estão no segundo.” Errado.
Bater na população islâmica da França é covarde. É bater no mais fraco.
Uma das defesas comuns ao estilo do Charlie
Hebdo é dizer que eles também criticavam católicos e judeus. Isso me lembra o
já citado gênio do humor (sqn) Danilo Gentilli, que dizia ser alvo de racismo
ao ser chamado de Palmito (por ser alto e branco). Isso é canalha. Em nossa
sociedade, ser alto e branco não é visto como ofensa, pelo contrário. E – mesmo
que isso fosse racismo – isso não daria direito a ele de ser racista com os outros.
O fato do Charlie Hebdo desrespeitar outras religiões não é atenuante, é
agravante. Se as outras religiões não reagiram a ofensa, isso é um problema
delas. Ninguém é obrigado a ser ofendido calado.
“Mas isso é motivo para matarem os
caras!?”. Não. Claro que não. Ninguém em sã consciência apoia os atentados. Os
três atiradores representam o que há de pior na humanidade: gente incapaz de
dialogar. Mas é fato que o atentado poderia ter sido evitado. Bastava que a
justiça francesa tivesse punido a Charlie Hebdo no primeiro excesso. Traçasse
uma linha dizendo: “Desse ponto vocês não devem passar”.
“Mas isso é censura”, alguém argumentará. E
eu direi, sim, é censura. Um dos significados da palavra “Censura” é
repreender. A censura já existe. Quando se decide que você não pode sair
simplesmente inventando histórias caluniosas sobre outra pessoa, isso é
censura. Quando se diz que determinados discursos fomentam o ódio e por isso
devem ser evitados – como o racismo ou a homofobia – isso é censura. Ou mesmo
situações mais banais: quando dizem que você não pode usar determinado
personagem porque ele é propriedade de outra pessoa, isso também é censura. Nem
toda censura é ruim.
Por coincidência, um dos assuntos mais
comentados do dia 6 de janeiro – véspera dos atentados – foi a declaração do
comediante Renato Aragão à revista Playboy. Ao falar das piadas preconceituosas
dos anos 70 e 80, Didi disse: “Mas, naquela época, essas classes dos feios, dos
negros e dos homossexuais, elas não se ofendiam.”. Errado. Muitos se ofendiam.
Eles só não tinham meios de manifestar o descontentamento. Naquela época, tão
cheia de censuras absurdas, essa seria uma censura positiva. Se alguém tivesse
dado esse toque n’Os Trapalhões lá atrás, talvez não teríamos a minha geração
achando normal fazer piada com negros e gays. Perderíamos algumas risadas?
Talvez (duvido, os caras não precisavam disso para serem engraçados). Mas se
esse fosse o preço para se ter uma sociedade menos racista e homofóbica, eu
escolheria sem dó. Renato Aragão parece ter entendido isso.
Deixo claro que não estou defendendo a
censura prévia, sempre burra. Não estou dizendo que deveria ter uma lista de
palavras/situações que deveriam ser banidas do humor. Estou dizendo que cada
caso deveria ser julgado. Excessos devem ser punidos. Não é “Não fale”. É
“Fale, mas aguente as consequências”. E é melhor que as consequências venham na
forma de processos judiciais do que de balas de fuzis.
Voltando à França, hoje temos um país de
luto. Porém, alguns urubus são mais espertos do que outros, e já começamos a
ver no que o atentado vai dar. Em discurso, Marine Le Pen declarou: “a nação
foi atacada, a nossa cultura, o nosso modo de vida. Foi a eles que a guerra foi
declarada” (grifo meu). Essa fala mostra exatamente as raízes da islamofobia.
Para os setores nacionalistas franceses (de direita, centro ou esquerda), é
inadmissível que 10% da população do país não tenha interesse em seguir “o modo
de vida francês”. Essa colônia, que não se mistura, que não abandona sua
identidade, é extremamente incômoda. Contra isso, todo tipo de medida é tomada.
Desde leis que proíbem imigrantes de expressar sua religião até... charges
ridicularizando o estilo de vida dos muçulmanos! Muitos chargistas do mundo
todo desenharam armas feitas com canetas para homenagear as vítimas. De longe,
a homenagem parece válida. Quando chegam as notícias de que locais de culto islâmico
na França foram atacados – um deles com granadas! - nessa madrugada, a coisa
perde um pouco a beleza. É a resposta ao discurso de Le Pen, que pedia para a
França declarar “guerra ao fundamentalismo” (mas que nos ouvidos dos xenófobos
ecoa como “guerra aos muçulmanos” – e ela sabe disso).
Por isso tudo, apesar de lamentar e
repudiar o ato bárbaro de ontem, eu não sou Charlie. No twitter, um movimento –
muito menor do que o #JeSuisCharlie – começa a surgir. Ele fala do policial,
muçulmano, que morreu defendendo a “liberdade de expressão” para os cartunistas,
do Charlie Hebdo, ofenderem-no. Ele representa a enorme maioria da comunidade
islâmica, que mesmo sofrendo ataques dos cartunistas franceses, mesmo sofrendo
o ódio diário dos xenófobos e islamófobos, repudiaram o ataque. Je ne
suis pas Charlie. Je suis Ahmed.
RENOIR NOS DEIXOU ESSE SIMBOLO, POIS
PRECISAMOS PENSAR E NÃO FALAR OU FAZER BOBAGENS!!!!!
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