CONFERÊNCIA
A BIBLIOTECA DO INFERNO
UM SUSPIRO NO PURGATÓRIO
por Bruno Fischer Dimarch
Alberto Manguel veio do outro lado do
Atlântico para encerrar com poesia, sensibilidade e literatura a temporada 2014
do Fronteiras do Pensamento. O conferencista é um homem do mundo, filho de um
diplomata, teve nos livros sua casa. Os livros foram sua casa nos diversos
países onde morara. Ao abrir uma página e encontrar nela as narrativas que lhe
eram familiares se sentia no lar. Foi a leitura o guia de seu caminho e, ainda
adolescente, abandonou a faculdade em Buenos Aires e passou a trabalhar em
editoras, mudando-se para a Europa, onde atuou em casas de prestígio na
Espanha, França, Itália e Inglaterra. O escritor mora atualmente em um vilarejo
francês e sua biblioteca particular abrange mais de 30 mil títulos.
Sua vocação e paixão pelo mundo dos livros
se desdobrou na conferência “A biblioteca do Inferno”. Manguel falou para o
público de São Paulo sobre parte do livro, que publicará em 2015 pela Companhia
das Letras, Curiosidades. Na obra, o autor procurou olhar para as questões
fundamentais sobre “nossas histórias, nossa identidade, nossas
responsabilidades no mundo, nossa forma de pensar e utilizar a linguagem”. E
para dar cabo a essa tarefa, auxiliou-se com Dante Alighieri na renomada obra A
Divina Comédia.
Sua narrativa está permeada de duplos,
repousa sobre o paralelo entre o Inferno de Dante e o Inferno de Auschwitz.
Primo Levi (1919-1987), um dos principais escritores memorialistas do
Holocausto, emerge como personagem de Manguel no momento de sua transferência
de um campo de concentração italiano próximo a Modena para o local que se
tornou ícone da Segunda Guerra Mundial.
Em Auschwitz, aproxima-se de Jean, o mais
jovem de seu grupo de trabalho no campo de concentração. Durante um trabalho
conjunto, Jean pede a Primo Levi que lhe ensine o idioma italiano. O pedido é
aceito e Levi se recorda do canto de A Divina Comédia que se refere a Ulisses
(e seu companheiro de batalha, Diomedes). Tem início a jornada da dupla, no
qual o mergulho em Dante dialoga com os flagelos de seu destino.
Enquanto Levi procura explicar os versos a
Jean, chega a esquecer quem é e onde está. A memória lhe traz versos “como
moedas a um mendigo”. O judeu italiano se apercebe de significados na poesia ao
levá-la ao jovem alsaciano. “A experiência de Levi é, quiçá, a mais definitiva
que pode viver um leitor. Vacilo em qualificá-la como definitiva, porque há
coisas que estão além da capacidade de nomear da linguagem. De qualquer
maneira, mesmo que não possa transmitir a totalidade de uma experiência, em
alguns momentos de graça a linguagem pode roçar o inominável.” Em diversos
momentos de A Divina Comédia, o autor afirma que as palavras não são
suficientes. Por esse motivo, Virgílio não pode abrir as portas da Cidade de
Dis para Dante, “a razão não pode descrever o Inferno”. De igual forma,
refletiu o prisioneiro de Auschwitz, “a linguagem carece de palavras para
explicar a ofensa da destruição de um homem”.
Há uma diferença, entretanto, entre os dois
infernos. Dante mostra o Inferno como local de “retribuição, onde cada pecador
é responsável pelos castigos que suporta”. O campo de concentração, por outro
lado, é o local do castigo sem faltas, e, se há uma falta, ela não é a causa do
castigo. “No Inferno dantesco todos os pecadores sabem por que sofrem.”
Manguel retoma a importância da linguagem
para os judeus. Deus impulsionara a humanidade por meio dela. “Para a maioria
dos judeus ortodoxos, as verdadeiras armas da resistência eram a consciência, a
oração, a meditação e a devoção.”
A linguagem não apenas impulsiona o bem,
mas também pode ser o arauto do pecado. “Ulisses está condenado a arder sem ser
visto, na chama bifurcada, porque seu pecado, de aconselhar os outros para que
cometam uma fraude, é um pecado furtivo, e como foi cometido com a língua, é
nas línguas da chama que será eternamente torturado.”
Em determinada situação, Levi questiona a
atitude de um guarda alemão e indaga “por quê?”, ao que este responde “aqui não
há nenhum porquê”. Reside nesta passagem a essência do Inferno de Auschwitz: no
campo de concentração, diferentemente do Inferno de Dante, não há porquê.
A língua de chama bifurcada, em sua relação
com o tempo, traz vozes antigas, vozes que insistem que Levi não deve perder
sua humanidade, que fazem Ulisses convencer homens a segui-lo “além do sol à
região sem gente”.
De suas duas pontas, apenas a maior se faz
ouvir. Diomedes, o coadjuvante guerreiro que acompanha Ulisses, talvez contasse
outra história do Inferno. “Se Diomedes pudesse falar a partir da chama
bifurcada, consciente que é da falibilidade dos deuses, talvez dissesse a Dante
que ser humano não evita que soframos torturas inumanas, que cada empresa
humana tem sua sombra inominada, que o ‘pobre e escasso resíduo’ da vida talvez
nos faça naufragar justo quando começamos a vislumbrar a desejada montanha, sem
que haja qualquer razão inteligível, só pelo capricho de Algo ou Alguém”.
Nesse ponto, o autor traz a voz deste outro
personagem, descrito com mais detalhes na Ilíada de Homero. Propõe que sua
oculta voz, a segunda ponta da língua bifurcada, pode ter sido aquele que tocou
a Levi em seu insight, um “algo gigantesco” que queria comunicar a Jean.
Alberto Manguel parece esboçar aqui a
complexidade da linguagem e da literatura, sua misteriosa perenidade: “A
literatura nada promete, salvo que, por muito que tentemos chegar a seu
horizonte mais distante, fracassaremos. Inclusive, mesmo que nenhuma leitura
seja completa e nenhuma página seja verdadeiramente a última, o regresso a um
texto que já nos é familiar, relendo ou recordando, nos permite uma navegação
mais ampla e o nosso ‘louco voo’, como descreve Dante a busca de Ulisses, nos
levará sempre um pouco mais longe no caminho até o significado. E, como Ulisses
descobre, seja qual for a compreensão a que por fim chegaremos, não será aquela
que esperávamos. Séculos de palavras transformam a antiga chama de Virgílio em
um bosque de significados, nem um deles perdido, nem um deles definitivo, e é
possível que, quando as palavras regressem a nós, em nossa hora de necessidade,
elas possam realmente nos salvar, mas só nesse momento. As palavras sempre
guardam outro significado que nos escapa”. Primo Levi foi um dos 20, dos 650
judeus italianos, que sobreviveu a Auschwitz. Tornou-se escritor de memórias,
contos, poemas e novelas. Mas, por mais que houvesse conseguido construir uma
vida normal, jamais encontrou o “porquê”.
Quando Virgílio e Dante chegam à praia do
Purgatório e se deparam com um anjo que traz as almas, ocorre uma cena
extraordinária, um suspiro de arte. Um amigo de Dante emerge e eles se reconhecem.
Ele, que havia musicado versos do poeta, canta uma vez mais ao amigo em
atendimento a um pedido seu, uma vez que acabara de regressar do Inferno. Então
ele começa a cantar as palavras de um poema composto pelo próprio Dante nos
anos de sua juventude. “A beleza da voz de Casella, no ar puro da praia do
Purgatório, faz com que Virgílio e as outras almas recém-chegadas se aproximem
para escutá-lo, fascinados, até que o ancião Catón corre até eles, gritando com
fúria para que voltem a seus sagrados assuntos, recordando-lhes o tremendo
propósito da sua viagem.”
São almas salvas, que têm que subir o monte
do Purgatório para começar seu caminho até o Paraíso. Tomadas de vergonha, elas
se dispersam do lugar e põem fim à canção do amigo, “mas não antes que Dante
nos mostre, de uma maneira tão humana, tão delicada, tão verdadeira, que
inclusive nos momentos mais importantes da viagem da nossa vida, quando está em
jogo a salvação da alma, a arte é essencial. Inclusive em Auschwitz, onde tudo
parece ter perdido a importância ou o sentido, a poesia pode agitar em
prisioneiros como Levi um resto de vida e oferecer a intuição de algo
gigantesco, acender nas cinzas uma chispa da velha curiosidade e fazê-la
explodir uma vez mais em chamas eternas”, finalizou Manguel.
Em seguida, o conferencista respondeu a
questionamentos da plateia. Sua primeira pergunta foi sobre o incentivo à
leitura. Alberto Manguel diz que apenas pode recomendar um livro a alguém que
conheça: “Somos todos diferentes e temos necessidades diferentes. No máximo,
poderia recomendar livros para não ler”. Ademais, “em uma sociedade comercial,
com propósitos financeiros, em que o valor está no que se faz rapidamente com
proveito financeiro, a leitura, que não tem proveito financeiro e requer
paciência, tempo, concentração e apreciar as dificuldades, é exatamente o
oposto do que se propõe. Se a leitura fosse um objeto comercial, como uma calça
jeans ou uma pizza, ela não poderia ser vendida porque não tem nenhum dos
elementos que se vendem”.
O escritor comentou ainda sobre escritores
que também escreveram sobre o Inferno, como Ricardo Piglia (sobre a ditadura
militar portenha) e Sinan Antoon (sobre a situação iraquiana); sobre sua
convivência com Jorge Luis Borges na juventude, em especial, pelos comentários
que o grande escritor fazia a respeito das leituras de Manguel quando ele
estava cego; sobre como organiza sua biblioteca, e faz referência a Aby
Warburg, que estabeleceu métodos muito distintos de disposição dos livros, em
uma biblioteca elíptica na qual promovia mudanças todo o tempo; Alberto Manguel
citou Machado de Assis, conhecedor e admirador que é de sua obra, como autor
referencial do Brasil, ressaltando que ele deveria ter um reconhecimento na
literatura internacional tal como James Joyce ou Franz Kafka e, com este
posicionamento, encerrou sua conferência no Fronteiras do Pensamento em São
Paulo.
FIM
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