O
OBSTÁCULO BÁSICO À LUTA DOS DIREITOS HUMANOS
Leonardo Boff* 15/09 às 06h09
O
tema dos direitos humanos é uma constante em todas as agendas. Há momentos em
que se torna um clamor universal, como atualmente com a criação do Estado
Islâmico que comete sistemático genocídio das minorias. Por que não conseguimos
fazer valer efetivamente os direitos não só humanos, mas também os da
natureza? Onde reside o impasse fundamental?
A
Carta da ONU de 1948 confia ao Estado a obrigação de criar as condições
concretas para que os direitos possam ser realizados para todos. Ocorre que o
tipo de Estado dominante é um Estado classista. Como tal é perpassado pelas
desigualdades que as classes sociais originam. Concretamente: a ideologia
política deste Estado é o neoliberalismo que se expressa pela democracia
representativa e pela exaltação dos valores do indivíduo; a economia é
capitalista que operou a “Grande Transformação”, substituindo a economia
de mercado pela
sociedade de mercado para a qual tudo vira mercadoria. Por ser capitalista,
vigora a hegemonia da propriedade privada, o mercado livre e a lógica da
concorrência. Esse Estado é controlado pelos grandes conglomerados que
hegemonizam o poder econômico, político e ideológico. Em grande
parte é privatizado por eles. Usam o Estado para a garantia de seus privilégios
e não dos direitos de todos. Atender os direitos sociais a todos seria
contraditório com sua lógica interna.
A
solução que as classes subalternas encontraram para enfrentar essa
contradição foi elas mesmas se organizarem e criarem as condições
para seus direitos. Assim surgiram os vários movimentos sociais e populares por
terra, por teto, por saúde, por escola, pelos negros, índios e mulheres
marginalizadas, por igualdade de gênero, por respeito do direito das
minorias etc. É mais que uma luta pelos direitos; é uma luta política para a
transformação do tipo de sociedade e do tipo de estado vigentes,
porque com eles seus direitos nunca irão ser reconhecidos. Portanto, a
alternativa à democracia reduzida é a democracia social, participativa, de
baixo para cima, na qual todos possam caber. O Estado que representa esse tipo
de democracia enriquecida teria uma natureza nitidamente social e se
organizaria para garantir os direitos sociais de todos. Enquanto isso não
ocorrer, não haverá uma real universalização dos direitos humanos. Parte dos
discursos oficiais são apenas retóricos.
As
classes subalternas expandiram o conceito de cidadania. Não se trata mais
daquela burguesa que coloca o indivíduo diante do Estado e organiza as relações entre ambos. Agora se
trata de cidadãos que se articulam com outros cidadãos para juntos enfrentarem
o Estado privatizado e a sociedade desigual de classe. Dai nasce a
concidadania: cidadãos que se unem entre si, sem o Estado e muitas vezes contra
o Estado, para fazerem valer seus direitos e levarem avante a bandeira política
de uma real democracia social, onde todos possam se sentir representados.
Cidadãos
se unem entre si, sem o Estado e muitas vezes contra o Estado, para fazerem
valer seus direitos
Esses
movimentos fizeram crescer, mais e mais, a consciência da dignidade humana, a
verdadeira fonte de todos os direitos. O ser humano não pode ser visto como
mera força de trabalho, descartável, mas como um valor em si mesmo,
não passível de manipulação por nenhuma instância, nem estatal, nem ideológica,
nem religiosa. A dignidade humana remete à preservação das condições de
continuidade do planeta Terra, da espécie humana e da vida, sem a qual o
discurso dos direitos perderia seu chão.
Por
isso, os dois valores e direitos básicos que devem entrar mais e mais na
consciência coletiva são: como preservar nosso esplêndido planeta
azul-branco, a Terra, Pachamama e Gaia? E o segundo: como
garantir as condições ecológicas para que o experimento homo sapiens/demens
possa continuar, se desenvolver
e coevoluir? Esses dois dados constituem a
base de tudo mais. Ao redor desse núcleo, se estruturarão os demais
direitos. Eles serão não somente humanos, mas também sócio-cósmicos. Em outras
palavras, a biosfera da Terra é patrimônio comum de toda vida em sua imensa
diversidade, e não apenas da vida humana. Então, mais que falar em termos
de meio ambiente, deve-se falar em comunidade de vida, ou ambiente inteiro. O
ser humano tem a função, já assinalada no Gênese, a de ser o tutor ou
guardião da vida, o representante legal da comunidade biótica, sem a pretensão
de superioridade, mas se compreendendo como um elo da imensa cadeia da
vida, irmão e irmã de todos. Daqui resulta o
sentimento de responsabilidade e de veneração que facilita a preservação e
o cuidado por todo o criado e por tudo o que vive.
Ou
faremos essa viragem necessária para essa nova ética, fundada numa nova
ótica, ou poderemos conhecer o pior, a era das grandes devastações do passado.
A reflexão sobre os direitos humanos de primeira geração (individuais), de
segunda geração (sociais), de terceira geração (transindividuais,
direitos dos povos, das culturas etc), da quarta geração (direitos genéticos) e
da quinta geração (da realidade virtual) não podem desviar nossa atenção
dessa nova radicalidade na luta pelos direitos, agora começando pelos direitos
da Terra e das tribos da Terra, base para todos os demais desmembramentos.
Até
hoje, todos davam por descontada a continuidade da natureza e da Terra. Não
precisavam se preocupar com elas. Esta situação se modificou totalmente, pois
os seres humanos, nas últimas décadas, projetaram o princípio de
autodestruição.
A
consciência desta nova situação fez surgir o tema dos direitos
humano-sócio-cósmicos e a urgência de que, se não nos mobilizarmos para as
mudanças, a contagem regressiva do tempo se coloca contra nós e pode nos
surpreender com um bio-ecoenfarte de consequências devastadoras para todo o sistema da vida.
Devemos estar à altura desta emergência.
*Leonardo Boff,
teólogo e filósofo, é também escritor. É dele o livro ‘Proteger a Terra e
cuidar da vida: Como escapar do fim do mundo'(Record, 2010).
Tags: agendas, clamor, direitos
humanos, genocídio, minorias, tema
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