A política entre a
utopia e a realidade
Leonardo Boff*29/09 às 06h00
Antes de abordarmos, sucintamente, a questão complexa da
política faz-se mister distinguir, como já fizemos em artigo anterior, a
política com P maiúsculo, que é a busca comum do bem comum. Dela todos os
cidadãos participam. Existe ainda a política com p minúsculo, que consiste na
política partidária, que como a palavra sugere, é parte e não o todo. São os
agrupamentos políticos com ideologia e projeto (é o que mais nos falta no
Brasil) que buscam o poder de Estado para a partir dele e de seus aparelhos
governarem o município, os estados e a Federação.
Importa ainda conscientizar o fato de que a política, mais
que qualquer outra realidade, participa da ambiguidade inerente à condição
humana que nos faz simultaneamente dementes e sapientes, sim-bólicos e diabólicos,
numa palavra, nos revela súmulas intrincadas de contradições. Por isso, por um
lado, dizem os papas, a política é a mais alta forma do amor e, por outro,
contém deformações lamentáveis como o patrimonialismo e a corrupção. Rubem
Alves deixou escrito: “A política como missão é a melhor das virtudes;
como profissão é a mais vil”. Dai viver a política em permanente crise. A nossa
é de baixa intensidade, pois o povo não se sente representado pelos
parlamentares, muitos deles vivendo de negociatas e de aproveitamento dos bens
públicos. Mas ela pode sempre melhorar e transformar-se, segundo o ideário dos
mestres Norberto Bobbio e Boaventura de Souza Santos, num valor universal a ser
vivido em todas as instâncias, da família, dos sindicatos até no centro do
poder. O ideal é que cheguemos a uma democracia sem fim, um projeto sempre
inacabado porque sempre perfectível.
Não secundamos um pragmatismo preguiçoso, sem sonhos e
destituído de vontade de aperfeiçoamento. Infelizmente, esta é a tendência
dominante, particularmente no quadro da pós-modernidade, para a qual qualquer
coisa vale (anything goes), ou só vale o que está na moda. E está contaminando
os jovens.
Entretanto, uma pessoa ou uma sociedade que já não sonha e
que não se orienta por utopias, escolheu o caminho de sua decadência e de seu
desaparecimento. Sem utopia não se alimenta a esperança. Sem esperança não há
mais razões para viver, e o desfecho fatal é a autodestruição. Ela desempenha função
insubstituível, pois relativiza as realizações históricas concretas e
mantém o processo sempre aberto a novas incorporações. Numa palavra, a utopia
nos faz andar. Jamais alcançaremos as estrelas. Mas que seriam nossas noites
sem elas? São elas que espantam os fantasmas da escuridão e nos enchem de
reverência face à majestade de um céu estrelado. Porque temos estrelas,
não tememos a escuridão.
Importa distribuir os poderes e realizar a busca comum do
bem comum para todos, sem privilégios e discriminações
Precisamos, portanto, de uma utopia para a política, para
que desempenhe a função pela qual existe: organizar a sociedade, montar um
Estado, distribuir os poderes e realizar a busca comum do bem comum para todos,
sem privilégios e discriminações. Isso vale tanto para a Política com P
maiúsculo quanto para a política com p minúsculo. Ambas precisam incorporar a
ética do bem comum, da responsabilidade coletiva, da transparência e da retidão
em todos os negócios onde estão envolvidos os poderes públicos.
Quando confrontamos a política realmente existente e a
utopia da política, notamos imensas contradições. Há um constrangimento
poderoso que pesa sobre a política: o fato de a política hoje estar
submetida à economia e ao mercado que se regem por uma feroz competição
deixando totalmente à margem a cooperação e os valores da solidariedade,
fundamentais para uma convivência civilizada. Isso faz com que os valores não
materiais, ligados à justiça social, à gratuidade, ao cuidado, à
solidariedade, ao trato humano com as pessoas, à liberdade de expressão ocupem
um lugar irrelevante quando não são feitos também mercadorias, colocadas na
banca do mercado e exploradas por conhecidos populistas ou por todo um mercado
de literatura de auto-ajuda que mais ilude que ilumina.
Ora, destes valores altamente positivos vive
fundamentalmente a política que se entende como prática da ética social. Não é
suficiente a denúncia das diferentes corrupções sem apresentar formas
alternativas ou legais de realizar os projetos políticos. Facilmente, caímos no
moralismo como se somente com a moral se resolvessem todos os problemas
A Igreja Católica ajuda a criar uma ética pessoal, de
retidão e integridade. Há políticos que incorporam esta ética (ética na
política). Mas ela não elaborou suficientemente uma ética social e política que
trabalhe as instituições, os braços longos do poder que devem ser transparentes
e um serviço público (ética da política). É nesse campo que ocorrem as
perversões da política. Especialmente grave é o financiamento privado das
eleições, que se traduz por troca de favores e implica alta corrupção.
No Brasil com tradição patrimonialista, o político
facilmente considera seu o bem público e se apropria dele sem maiores
escrúpulos. É roubo do pão que falta na mesa do pobre, é livro que o
estudante não tem, é remédio inacessível ao enfermo necessitado.
A desejada reforma política reintroduziria a ética na
política — para Aristóteles, política e ética eram sinônimos.
*Leonardo Boff, teólogo e filósofo, é também escritor. É
dele o livro ‘Proteger a Terra e cuidar da vida: Como escapar do fim do mundo' (Record,
2010).
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