quinta-feira, 4 de junho de 2015

A ARTE DA RESISTÊNCIA - PROFª. DRA.ELIANE GANEM


A ARTE DA RESISTÊNCIA
PROFª. DRA.ELIANE GANEM
Este texto foi originariamente apresentado no “I Simpósio de Arte e Cultura da Diversidade: Poéticas do Cotidiano”, organizado pelo Programa de Pós-Graduação em Ciência da Arte da UFF.

Para não me estender demasiadamente em conceitos que não podem ser entendidos rapidamente, quero apenas enfatizar aqui, que qualquer investigação sobre arte e ciência, supõe uma reflexão fundamental sobre a existência e que pode ser expressa na pergunta -“Quem sou eu?”. Como um corpo social, estamos voltados basicamente para essa pergunta fundamental também no sentido da nossa experiência cultural, ou seja, como conjunto coeso de interações, de necessidades comuns, de ideologia, de crenças, que fazem com que permaneçamos ligados por vínculos sólidos e princípios éticos inquestionáveis. A maior parte dessas ideias que nos tornam coesos faz parte da comunicação que é passada de consciência para consciência, formando um ego social forte e necessário à nossa sobrevivência.
Comungamos mais ou menos as mesmas ideias estabelecendo normas, regras, leis e desenvolvendo uma ciência e uma tecnologia, assim como uma arte que confirme as nossas atitudes e crenças. Um exemplo disso foi a arte do século 20. Esta arte se forjou vinculada aos ideais científicos das ciências sociais, que teve como expressão máxima as novas teorias que transformaram o século 20 num laboratório prático para que a arte e a ciência caminhassem de mãos dadas. As ideias revolucionárias marxistas, que identificamos como o centro do pensamento das ciências sociais do século 20, caminharam passo a passo com uma arte que chamamos de revolucionária, uma arte da resistência, uma arte engajada e promissora e que ventilava a busca de novos ares para a humanidade e, individualmente, para nós mesmos.
A expressão “resistência” foi cunhada por esta nova forma de compreensão do mundo. Borramos tudo de uma única cor – o vermelho – e definimos para nós uma posição única de estar no mundo. Pelo menos no mundo Ocidental, a arte passa a se constituir como arte de resistência ao sistema, de resistência ao capitalismo, de resistência à exploração dos países mais adiantados, de resistência popular à arte de elite, à arte burguesa, enfim a arte resistindo à própria arte muitas vezes e criando barreiras que se tangenciavam, mas que dificilmente se imbricavam umas nas outras.
O olhar do século 21 nos permite fazer uma reflexão sobre o nosso conceito atual de arte e como precisamos nos desfazer desse “olhar” comprometido com as ciências sociais do século marxista que acabamos de deixar para trás. Inauguramos talvez uma nova percepção de mundo, uma nova ética, uma nova experiência mística do ser em busca de si mesmo, abandonando não a ciência, mas a resistência que nos impomos diante de ideais europeus, que importamos.
No Brasil, não temos uma arte de museus, a não ser em um sentido muito pontual – ou seja, aqui e ali, temos um Portinari, um Di Cavalcanti, uma Malfatti, uma Tarsila, e alguns outros poucos, mas não temos movimentos expressivos que tenham criado um acervo abundante e de qualidade realmente reconhecida não só por nós, mas também pela crítica internacional. Desde 1920, com a nossa famosa Semana de Arte Moderna, que não tivemos movimentos que pudéssemos chamar de expressivos para a nossa arte, fossem eles quais fossem. Mesmo que alguns “especialistas” apontem para o construtivismo, o concretismo e o neo-concretismo - da década de 50 - não temos de verdade, hoje em dia, um desdobramento proeminente desses movimentos ondulatórios nas artes plásticas. Por isso, é de extrema estranheza quando grupos sociais utilizam expressões - arte de elite, arte de museus - em contrapartida com a arte popular que criamos no meio das ruas – ou no aconchego de espaços pobres e comunitários - deste nosso vasto e extenso território nacional. Muitas culturas convivem e se harmonizam umas nas outras na diversidade que nos acostumamos a presenciar no nosso país. Chamamos de popular essa arte como se houvesse a contrapartida de uma outra – a de elite – e que estaria confinada em museus e cujos artistas seriam aqueles realmente reconhecidos e cujas obras – seletas – colocariam a chamada arte popular em desnível social, como arte não reconhecida, e por isso mesmo uma arte da resistência.
Na verdade, no nosso país só temos esta arte que chamamos de popular. Inexiste no Brasil atual uma elite intelectual forte. Até a década de 70, procurando otimistamente estender para a de 80, tínhamos uma arte em alguns centros urbanos, como Rio de Janeiro e São Paulo, que podíamos chamar de erudita até, mas de uma “elite” que – ironicamente - tratava de temas populares, denunciando a exclusão social, do ponto de vista da ótica marxista. Hoje, se há uma elite intelectual erudita, apenas temos dela ainda conservados algumas pálidas espécies confinadas nas universidades, em alguns órgãos de pesquisa, em alguns setores tímidos que ainda teimam em preservar o patrimônio histórico, artístico e cultural de um Brasil que importava da Europa um imaginário que não era seu. E esse tem sido o nosso ponto de estrangulamento. Uma elite intelectual não deve vir atrelada apenas a uma forma de pensamento, pois com esse tipo de atitude acaba por pagar o preço do seu próprio aniquilamento, resultado do passar dos anos, do esgotamento de sua única crença.
Na verdade, até o século passado importamos da Europa a nossa arte. No teatro, por exemplo, Brecht mudou toda a concepção teatral, a dramaturgia, a forma de interação público-plateia, criando um teatro novo e revolucionário. O teatro da consciência revelou que a arte tinha um papel de transformação social que extrapolava o conceito de fruição estética da arte burguesa. No Brasil, tivemos textos de Oswald de Andrade – com o seu famoso Rei da Vela – eclodindo num teatro de vanguarda associado a uma luta de classes, contra a elite burguesa e a ditadura militar, que estranhamente, ao invés de proteger a burguesia - como seria de se esperar - na verdade perseguiu os seus filhos, torturando-os e, muitas vezes, eliminando-os ao longo de mais de duas décadas.
Enfim, herdamos literalmente as ideias revolucionárias da juventude europeia – da revolução russa até as duas grandes guerras mundiais – recebendo em nosso território um grande contingente de intelectuais jovens, que fugiram de seus países. Atores, diretores de teatro, que por aqui aportaram, trouxeram não só as ideias revolucionárias marxistas, mas também trouxeram a si mesmos, sua visão de mundo, sua resistência, seus ideais.
Esse movimento se fez expressivo também na nossa música – as composições de Chico Buarque eram inteligíveis apenas para os iniciados que comungavam os ideais marxistas. Expressivo também na literatura, nas artes plásticas, enfim em todos os setores, já que a grande maioria dos artistas passou a utilizar a arte como o lugar da denúncia social, da resistência e do despertar coletivo.
Hoje em dia nos acostumamos a olhar o mundo ainda por esta ótica manchada da resistência. Ainda estamos resistindo, querendo que a arte popular seja reconhecida, protegida, valorizada e mistificada. Não nos perguntamos ainda do que se trata exatamente esse reconhecimento e por quem, e que arte é esta. Não nos preocupamos exatamente com a nossa arte e a qualidade artística dessa arte – já que essa conceituação é burguesa – mas com o que os artistas estão fazendo para tornar sua arte popular assimilável pelas camadas mais carentes da população. E se esses artistas, ao se voltarem para as comunidades carentes, realizam algum “trabalho de base” que possa contribuir com a melhoria do nível intelectual do povo.
Mesmo correndo o risco de expor um pensamento contrário ao que foi defendido no século passado, gostaria de deixar a minha contribuição no sentido de levantar uma questão que acredito primordial para o nosso entendimento sobre a arte popular. Na minha opinião não existe hoje outra arte em nosso país, que não seja a chamada arte popular. A velha dicotomia entre a arte burguesa e a arte popular, que levamos mais de um século cunhando, se mostrou estéril pelo menos na nossa realidade brasileira. Toda a nossa arte, da menos à mais expressiva, nasceu e se desenvolveu como arte popular. Como já disse anteriormente, mais do que felizmente, infelizmente não temos aquilo que se pode chamar de uma arte burguesa expressiva, uma arte de museu, uma arte erudita ou uma arte de elite. Digo infelizmente, porque a nossa resistência talvez nos tenha tornado menos ricos em nossa diversidade cultural e artística, moldando os olhos através do preconceito rude de um proletariado imaginário.
Por outro lado, esse fato nos liberta, e é exatamente isso que quero chamar a atenção aqui. É que não precisamos do reconhecimento do outro para que a arte popular se firme. A arte do outro também é popular, e ele também depende do nosso olhar para confirmar a sua importância cultural. A arte das ruas, das comunidades – carentes ou não - criadas dentro da necessidade de expressão da nossa constituição como povo, da nossa busca por uma identidade cultural diversificada, é a nossa única arte. Cheia de influências, de miscigenação de muitas culturas, muitas vezes desdentada e inapropriada. Muitas vezes expressa com palavras erradas, com erros de concordância, pintada com tinta de má qualidade, borrada, excessivamente diluída. Repleta de danças com um formato indígena, negro, caboclo, cheia de folguedos e intromissões, de cores e de um imaginário retirado dos muitos mitos que carregamos das nações que nos constituíram. Não há a quê resistir, não há o que reconhecer. Estamos todos já apropriados pela nossa brasilidade que reconhece o congado, o jongo, o maracatu, a capoeira, o bumba-meu-boi, as inúmeras cantorias e rezas das benzedeiras, os repentes, o cordel, a nossa irreverente facilidade de criar novas possibilidades baseadas em antigas tradições. O samba, as rodas de umbanda, as giras, os pontos cantados, a alegria e a tristeza que nos inspiram. Até mesmo no imaginário poético da nossa relação com o divino. Mesmo nas igrejas importadas – com santos que são, na sua maior parte, europeus. Ou então, com a importação e a apropriação das ideias de Lutero, Calvino, também europeus, e que seccionaram as igrejas para nos fazer pensar – hoje em dia – que cabe também na nossa diversidade esse jeito rigoroso dos ternos mofados e das saias pregueadas e compridas das mulheres beatas.
Enfim, chamo a atenção para o fato de que no século passado importamos o nosso saber, a nossa imaginação, a nossa compreensão, a nossa política, a ética, a moral, a relação dos homens sisudos dos países frios, as roupas, as divindades, a literatura, a poesia, a pintura, os clássicos, os filmes, o teatro, a dança, o inconformismo dos povos europeus e chamamos tudo isso de nosso por um bom tempo. E esperamos que esse nosso, como cobra criada, deite o seu olhar superior e reconheça o outro lado, aquele que passamos o mesmo longo tempo escondendo, quem sabe para podermos depois inventar aquilo que chamamos de resistência, criando assim o nosso próprio inimigo, lutando contra moinhos de vento que jamais existiram.
Esquecemos que chamamos de nosso também os orixás, o carnaval, as escolas de samba, os gingados mulatos e toda uma cultura negra importada. E que não a qualificamos como erudita, já que permaneceu confinada nas senzalas. Mas que em outros países pode ser borrada com a capa sofisticada daquilo que é importado, exótico, diferente.
Enfim, a nossa arte é esta diversidade, presente nos batuques das ruas, nos quintais das casas, nas tiras de papel repletas de poesia e penduradas nas cordas, no barro espremido entre nossas mãos caboclas – em esculturas torcidas como os filetes de alma que povoam os sertões.
E este meu depoimento tem a marca de uma artista que se sente um pouco um animal em extinção. Não faço parte desse popular, porque eu sou esse popular. Não levo a minha experiência para as comunidades carentes porque os meus livros penetram nas casas, sem discriminação. Este é o meu trabalho, como escritora. É sozinha, no silêncio da minha alma, que se expõe ao mundo. Que construo a minha identidade, o meu quem eu sou? É assim o caminho dos artistas, dos poetas, dos pintores, dos cantores, dos jongueiros, dos repentistas, dos capoeiristas, dos escultores, dos atores. Esta é a nossa conversa com Deus. Não porque o social precisa de nós, mas porque é na busca incessante do nosso próprio eu que nos revelamos ao outro e entregamos a ele o que temos de melhor. E então o social se revela como um coletivo de múltiplas expressões.
Na verdade, dançamos porque dançamos. Cantamos porque cantamos. Escrevemos porque escrevemos. Enfim, vivemos, mesmo que não haja motivo. E não há nenhum social capaz de explicar isso.
O que quero deixar claro aqui é que não precisamos mais nos apegar aos nossos inimigos, aos burgueses, ao capitalismo, ao estrangeiro, ao internacional. Não precisamos mais viver a divisão que criamos no seio mesmo de uma arte popular, seccionando-a de acordo com modelos inventados pelas ideias revolucionárias das ciências sociais do século passado. Afinal, já que não temos mesmo uma arte burguesa, podemos relaxar na nossa obscura missão de julgar a arte. Não precisamos mais gerar o ódio, a luta de classes, a resistência, o medo, a discórdia, as guerras exageradas, as dissidências, a corrupção de nossas almas envenenadas, a mídia do espetáculo, os sem teto, os sem vontade, os derrotados, os descamisados, os bóias-frias. Não precisamos mais passar nenhuma demão de tinta em nossa paz de espírito, nem precisamos mais ser revolucionários, frios, duros e calculistas. E nem mesmo precisamos aprender uma forma de “não perder a ternura jamais”.
Não precisamos mais criar nem mesmo novos inimigos. Os que temos nos bastam. Precisamos agora reconhecer que não precisamos mais de reconhecimento. Que a nossa arte é única e toda ela popular. Que a resistência está fadada ao esquecimento. Estamos todos solidários no mesmo projeto que é enxergar a nossa brasilidade, não pelo viés do olhar estrangeiro, mas pelo viés da nossa diversidade, da nossa afirmação enquanto cientistas, artistas, espiritualistas e nação ávida por novos anseios, novas bases e um novo entendimento de si mesma.
Estamos recriando a possibilidade de aproximar a arte e a ciência, agora não mais no interior de uma concepção marxista, como foi a aliança entre a arte e a ciência no século passado. Mas agora uma aliança que requer autonomia artística, ou seja, a possibilidade da arte estabelecer seu próprio estatuto, mas ao mesmo tempo se colocando como alicerce de uma nova ciência, que pressupõe novos paradigmas para construção de um novo olhar científico. A arte e a ciência hoje – aliviadas da carga do passado - caminham de mãos dadas no projeto único de investigação da nossa brasilidade, do “quem somos nós, realmente”. E esse é um projeto capaz de nos revelar a nossa verdadeira face, de recriar a nossa atual identidade e de estabelecer para nós mesmos os nossos próximos desafios.
A arte, aliada às novas possibilidades de uma ciência que se argui a si mesma, atribuindo a si mesma uma nova consciência, será talvez o ponto de transformação necessário para a inclusão social de todos. Talvez a menina dos olhos do século 21 seja esse florescimento da consciência, e da possibilidade que temos de perceber que condicionamos a nossa forma de existir e de nos inserirmos no mundo ao roteiro que nós mesmos podemos construir para as nossas experiências artísticas, científicas, filosóficas e místicas. Na verdade, o que nos acontece não é fruto apenas das oportunidades deste planeta, mas das oportunidades que a nossa consciência busca, nesse afã que temos de estabelecer uma comunicação interior espiritualmente rica, e que é nomeada por nós como arte e ciência. Mas que também cria para nós a nossa própria prisão, caso não tenhamos a clareza de que se tratam de conceitos, ou como diz Foucault, tão apropriadamente, “de palavras e coisas” ligadas por similitudes e analogias que nós mesmos criamos.



O texto é de veras interessante, porém ao final a autora se descura de sua rebeldia e se remete à opinião de um “execrado europeu!”, ou deveríamos evitar a xenofobia e aproveitar de tudo um pouco, já que ao que se diz o povo brasileiro é a amalgama de todos os povos que aqui foram acolhidos e que lhe propicia tanta riqueza e diversidade? Para quê rejeitar, em vez de aproveitar e adubar a nossa arte e ciência? Adelaide uma estrangeira em terras brasileiras.

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